segunda-feira, 18 de maio de 2009

Deus e o Mundo

E Deus, que é um fervoroso defensor do feedback como forma de conhecer melhor a organização, desceu novamente à Terra para ver como andavam as coisas. Fazia muito tempo desde a última vez que fora em pessoa e não tinha muita fé nos relatórios que vinha recebendo. Era melhor ver com os próprios olhos. E escutar com os próprios ouvidos. E cheirar com o próprio nariz, sentir na própria pele e saborear com a própria língua.

Para evitar qualquer alusão ao Apocalipse, programou sua descida no ano de 2009, para o qual não havia nenhuma profecia cataclísmica catalogada no arquivo celestial. Sua descida era completamente top-secret-classified-information, mas vai que algum assessor com excesso de pró-atividade manda preparar uma recepção? Não queria nem pensar na hipótese. Melhor prevenir.

América do Sul...Brasil...São Paulo...Bela Vista...Avenida Paulista...em frente ao Parque Trianon. Assim que chegou, sentiu a brisa suave no rosto e viu que era bom! Também sentiu o calor do sol e abriu os braços para receber plenamente essa dádiva. Por que os homens reclamam tanto? Isso é divinamente gostoso! Poderia ficar horas sentindo os raios banhando sua face e o vento envolvendo seu corpo...

- Aí, chefia, vai uma lupa? Não dá pra ficar brincando com os ultra-violeta, não, hein?

Ah, pensou, o escambo. Surpreendente como as formas mais simples de comércio eram sempre as mais enraizadas! Examinou a banca e viu diversos óculos escuros expostos. Pegou um meio triangular, estilo Chips, marca RaiBam.

- Boa escolha, o chefe tem bom gosto! Esse tem proteção contra radiação, UVA e UVB, além de ser irado! Normalmente sai por 15, mas pro senhor, faço por deizão...

Pôs a mão no bolso e...providência divina! Lá encontrou uma nota de 10 reais! Sabia que estaria lá assim que precisasse, mas sempre se animava com esses pequenos milagres, mesmo que fossem seus. Pagou ao homem e colocou os óculos no rosto.

Agora que estava devidamente equipado, era mais fácil olhar para cima e admirar as maravilhas arquitetônicas que o cercavam. Pessoalmente, preferia uma coisa mais minimalista, mas não dava para negar a imponência e grandiosidade dos edifícios. Estava na cara que os homens tentavam compensar alguma coisa, só não conseguia dizer exatamente o quê. Talvez alguém pudesse explicar na volta. Aquele austríaco careca de barba branca, por exemplo. Sigmund alguma coisa. Dizem que tem coisa que só ele explica.

Mais à frente, um grupo de pessoas se aglomerava em torno de um orador que pregava aos berros, provavelmente para tentar ser ouvido acima dos ruídos dos automóveis. Pensando bem, os sons e odores não estavam à altura das imagens e sensações táteis. Eram até bem desagradáveis. Talvez essa fosse a raiz da insatisfação humana dessa vez, pensou. Mau cheiro e barulho, realmente, podiam levar qualquer um à loucura! Mas seria o bastante?

Segundo a teoria de estatística celestial – de autoria própria e infinitamente mais avançada que os rudimentos usados por aqui – a qualidade de vida do planeta seria aceitável se, e somente se, pelo menos três dos cinco sentidos concedidos ao homem fossem positivamente estimulados durante a visita. Metade mais um. A idéia de dar um número ímpar de sentidos ao homem fora mesmo providencial. E é claro, nada dessa perda de tempo de amostragem mínima ou intervalo de confiança. A visita – única, pessoal e intransferível – devia acontecer no local e instante que melhor aprouvesse à inspiração divina, nem um segundo antes e nem um centímetro para o lado. Simples e perfeito, do jeito que gostava.

Até aquele momento, o placar das sensações na Av. Paulista estava empatado. O sol e o vento tinham agradado e os grandes edifícios eram belos, apesar da óbvia compensação – não estava ali para julgar ninguém. Pelo menos, não ainda. Por outro lado, a fumaça agredia suas narinas e os decibéis machucavam seus ouvidos. Logo, para sacramentar a decisão, para ter certeza absoluta do veredicto, precisava testar o último sentido: o paladar.

Coincidentemente – aliás, como era divertido o conceito humano de sorte e coincidência! – vinha na direção contrária uma menina no colo de seu pai, lambuzando o rosto todo com um sorvete. Sim, era daquilo que precisava. Ele abaixou os óculos e piscou para a criança, que deu um sorriso todo babado e ofereceu o quitute. Retribuindo o sorriso, aceitou a oferenda de bom grado.

Era uma casquinha de baunilha. Ele deu uma lambida e viu que era boa! Divinamente refrescante, doce, dissolvia-se na boca. Ousava dizer que era até melhor que a ambrosia que provara no Monte Olimpo, embora não chegasse aos pés do chocolatl azteca. Hum, só de lembrar do chocolatl a boca já enchia de água...

De qualquer forma, o sorvete era bom e era tudo o que importava. Placar final, Bom 3x2 Ruim. Apesar de ter sido o resultado mais apertado da história humana, fora provado cabalmente que o homem continuava reclamando à toa. A qualidade de vida na Terra é boa. E, pensando bem, era típico dos humanos fechar os olhos para tudo de bom que existe no mundo e focar toda a atenção nos problemas. Que, na maioria das vezes, eles mesmos criaram, diga-se de passagem.

Agora tinha que pensar na melhor maneira de refrear os ânimos lá em cima. Não queria desmotivar seus promissores executivos, mas não podia permitir que algum jovem impulsivo resolvesse proclamar a falência e a inviabilidade da raça humana. Ou pior, decretar uma intervenção divina! Como se a última já não tivesse dado bastante problema!

Bom, melhor ir embora logo, antes que o tal orador suba no caminhão e comece a gritar palavras de ordem. Afinal, a paciência divina é grande, mas tem limite.

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